Posted by J. Vasco em 08/03/2010
Um grande livro, publicado em 2008.
Sobre ele não se escreveu uma linha. Não para vergonha do autor, que é um escritor de mão cheia, mas antes do jornalismo cultural que temos, ocupado apenas com três coisas: garantir a saúde financeira dos grandes figurões mediáticos e das suas casas editoriais, legitimar a hegemonia do best-seller de comer e deitar fora, e promover medíocres escribas que nos querem vender como escritores criativos das novas gerações. Pelo meio, perde-se a oportunidade de analisar e de divulgar escritores que, pelo seu trabalho sério, criativo e original, merecem ser destacados. Jorge Carvalheira, com 60 e alguns anos, é um deles. O paciente e aturado trabalho de oficina; o conhecimento profundíssimo da literatura e da língua portuguesas de que dá mostras; a mestria técnica – fazem de As aves levantam contra o vento um dos grandes romances da literatura portuguesa dos últimos cinco anos.
O tema do romance é, porventura, inédito na ficção portuguesa – e pode explicar a raiz do silêncio à sua volta. Um militar que se exila na sequência do 25 de Novembro é coisa que, no mundo publicístico português, existe apenas, se não estou a ver mal, enquanto relato documental (lembro-me, nomeadamente, de Varela Gomes). Trata-se, porém, de um 25 de Novembro que tem história, que não se esgota em si, que tem passado (de séculos) e que tem consequências futuras. Acaba, por isso, por ser uma reflexão sobre a modernidade portuguesa, em geral, tendo como pressuposto inicial o 25 de Novembro.
Perante o romance, ficamos siderados, rendidos. Os traços essenciais da obra anterior de Jorge Carvalheira (O Mensário do corvo, ed. Quasi, e alguns contos na colectânea em dois volumes Memórias da guerra colonial, ed. Andrómeda) confirmam-se plenamente aqui, mas agora de uma forma mais sublimada, mais madura, mais certa de si. A influência e a apropriação criativa de Saramago são extremamente fortes, marcantes, estruturantes. O que melhor resulta nesse processo é que Jorge Carvalheira não pega numa forma pronta e acabada a aplicar mecanicamente ao objecto que trata. Não. Deixa que a lógica específica do tema sobre que se debruça determine as influências que vivem intensamente em si, situação que humaniza as persongens, os seus caracteres e as suas acções.
A influência de Saramago levada a este nível é coisa nunca vista. É relativamente vulgar encontrar uma linhagem faulkneriana: Rulfo e Vargas Llosa, nas Américas, Lobo Antunes e Marsé, na Europa. Uma sub-linhagem pode também ser encontrada, por exemplo, a partir de Lobo Antunes: Peixotos, Guedes de Carvalhos, etc. (qualquer português aspirante a escriba, em geral). Percebe-se: é uma escrita muito emotiva, cujas poética e musicalidade são particularmente belas e viciantes. Mas enquanto Lobo Antunes, por exemplo, não imita Faulkner – já que não autonomiza a forma, mas antes trabalha a realidade espacio-temporal portuguesa através da influência de Faulkner -, os Peixotos e os Carvalhos caem no exerciociozinho de estilo vazio, ou seja, imitam somente a forma (rebaixam-na a um jogo fútil e inconsequente), marimbam-se para tempo e espaço, para essa chatice da determinação histórica de uma situação.
Em relação a Saramago, não se encontra tal linhagem de seguidores. Porque a escrita não é de adesão tão imediata, é mais mediada, mais dobrada, porque o narrador apresenta um estatuto complexíssimo: conta-nos a história, conduz-nos, literalmente, aos espaços físicos e psicológicos, anuncia os procedimentos formais e estilísticos a que vai recorrer, varia as escalas e os pontos de vista, por vezes desaparece e não anuncia, por vezes desaparece e anuncia, etc, etc, etc. É uma escrita que exerce a sua influência, portanto, ainda mais do que na linhagem faulkneriana, através desta originalidade e genialidade formal. O perigo, por conseguinte, para o seu seguidor é precisamente o de cair nesta apropriação meramente estilística, oca, formal. E talvez devido a essa dificuldade não haja verdadeiros seguidores de Saramago. Até 2008. Até a As aves levantam contra o vento. A apropriação é aí verdadeira, é profunda, é filtrada e trabalhada pela densidade e espessura da personalidade e da vida do autor – a apropriação é revolucionária.
Outro aspecto interessante (e mais particular, no âmbito dessa influência geral) são as homenagens subliminares prestadas por Jorge Carvalheira ao seu mestre, quando ecoa, em breves passagens, obras ou asserções de Saramago. Para o atestar basta referir no romance a presença fortíssima, tutelar, de Memorial do Convento.
Disse ao início que o 25 de Novembro era visto neste romance no seu devir histórico e não como um momento isolado, abstracto. Ora, tudo isso é suportado, de maneira muito interessante, pela utilização de flash-backs, não tanto como procedimento metodológico de construção narrativa e dramática, mas mais como, digamos, idiossincrasia, visão e sentimento do mundo. Trata-se de uma eclosão triunfante do passado no campo do presente, de uma afecção da história geral e individual pelo passado. Em Jorge Carvalheira, note-se, é esta uma ligação orgânica, a de passado e presente, muito estreita e forte. Orgânica, no plano mais abstracto da inter-relação das duas categorias. E orgânica no plano da inter-relação entre história geral e história individual.
Uma última referência, entre muitas outras possíveis. Continua a encantar-me, em Jorge Carvalheira, o conhecimento e o domínio da língua portuguesa que demonstra – tanto das suas expressões e ditos populares, como dos seus termos mais eruditos. Um verdadeiro escritor nunca pode dispensar esta dimensão: é o seu material de trabalho, é a sua ferramenta, é o ar que respira e de que se alimenta.
Olhe que não tem ligação (cf: LINKS) ao blog de Jorge Carvalheira, Ladrar à lua