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A RUA DO CONSUMO CRUZA SEMPRE COM A AVENIDA DA PRODUÇÃO

Posted by qmiguel em 24/10/2012

       Chegado ao fim do meu trajecto nos transportes subo para respirar a manhã da cidade em ebulição. Uma esquina, ora outra, e deparo-me então com uma multidão ordeira disposta numa fila que se estendia por um quarteirão inteiro. Do outro lado da estrada um grupo diferente protestava contrastando com a ordem da fila disposta à sua frente. Como as minhas manhãs são de difícil acesso, sobretudo para o meu cérebro, procuro compreender calmamente o porquê de tamanha agitação. Facilmente num golpe de vista identifico um signo que me é familiar: Apple; faço mais um esforço e começo a notar na composição social dos indivíduos que compõem a fila: claramente abastados, jovens dinâmicos “futuros empreendedores” penso eu para mim mesmo porque as minhas manhãs são também o território preferido dos meus preconceitos. Entre os dinâmicos futuros jovens empreendedores consigo distinguir, a espaços, alguns sem-abrigo: uma especialidade que nos é oferecida pela burguesia parisiense. Trabalho então com três contradições ao mesmo tempo, demasiado para a minha mente ainda anestesiada. Começo a ouvir as reivindicações dos que, do outro lado, protestam, já circundados pela muy cortês Companhia Republicana de Segurança (CRS). A maioria dos que se encontram na fila procuram ignorar o protesto, alguns esboçam um insulto que não consigo perceber claramente.

           Chego-me então perto dos que compoêm a fila junto à porta, sobretudo porque me estão mais próximos mas também porque os simpáticos polícias tornam já mais dificil o contacto com os manifestantes. Entre muita roupa de marca e a vontade febril de surfar na crista da onda da sociedade de consumo (?) dizem-me não compreender o porquê da manifestação, nem de que se trata, nem porque estariam ali neste dia. Entretanto como vou acordando já consigo ouvir as renvindicações dos manifestantes e mais importante compreender o que reclamam: trabalho. São antigos empregados da Apple vítimas de uma qualquer “reestruturação” desse templo da inovação (?), afinal “re-inventar a nossa forma de viver” deve ter danos colaterais deste tipo. A fila dos consumidores libidinais essa continua serena, só não consigo perceber o porquê destes contarem entre as suas fileiras com um número considerável de sem-abrigo, desta vez não me vou contentar com uma evasiva e abordo um deles: diz-me que foram pagos para estarem ali, que estão apenas a guardar lugar para consumidores retardatários que asseguraram desta maneira um lugar na fila. “Quão mais libidinal pode ser o consumo?”, pergunto-me. Bem me parecia que o poder de compra dos sem-abrigos não ia a par com as ambições comerciais da Apple, afinal “reinventar a forma como vivemos” sim, tudo bem, mas não para todos. Enojado cruzo a estrada aproximo-me dos manifestantes, grito-lhes qualquer coisa que os encoraje e sigo porque já estou atrasado para outras lutas.

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